O assunto de línguas estranhas tem dividido evangélicos há décadas, com pessoas se colocando em um dos dois lados: o dos cessacionistas, que acham que os dons sobrenaturais cessaram com o fim da era apostólica, e o dos carismáticos, que acham que os dons ainda são a norma para a igreja de hoje.
Lembro-me de meus tempos de faculdade, quando uma aluna evangélica me disse que gostava dos batistas (eu sou batista), só não entendia por que nós não falávamos em línguas. Como eu não queria iniciar uma discussão com a irmã, disse apenas que “não precisamos. As pessoas no Brasil entendem português.”
Mas, afinal de contas, por que alguns cristãos falam em línguas e outros não? Por que este fenômeno permaneceu escondido ao longo da história da igreja e retornou no século XX? Não sou autoridade nestes assuntos em termos de experiência pessoal, portanto vou procurar apenas revisar alguns textos.
Primeiro, o que é o dom de línguas?
A definição deve ser, necessariamente, obtida a partir da descrição de Atos 2, pois este foi o primeiro momento na história em que o dom se manifestou.
“E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem...E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros: Pois quê! não são galileus todos esses homens que estão falando? Como, pois, os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos?”
Portanto, o dom de línguas é a capacidade sobrenatural de falar uma língua sem tê-la estudado. O termo grego traduzido por línguas em Atos 2 é glossa, que refere-se à língua como um órgão do corpo, ou à linguagem de um povo.
Algumas pessoas acham que o dom de línguas no livro de Atos refere-se a línguas estrangeiras e que em I Coríntios 12-14 refere-se a gemidos ou sílabas initeligíveis, pronunciados quando em um estado de êxtase espiritual. Seria a chamada “língua dos anjos”. No entanto, o termo grego em I Coríntios continua sendo glossa, e não há motivo na Bíblia para achar que trata-se de um outro dom, diferente do de Atos. Pelo contrário, compare o que diz o Senhor:
"E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos." Mt 6:7
A expressão “vãs repetições” é uma tradução do grego battalogeo, que significa “ficar repetindo a mesma coisa, usar palavras vazias, falar de maneira ininteligível, tagarelar, falar sem pensar”. A palavra vem de uma composição entre batta e logeo (falar). Batta não é uma palavra, é apenas uma onomatopéia para indicar um som ininteligível. Naquela época, os pagãos envolvidos com as religiões de mistério falavam “em línguas”, apenas repetindo sons sem sentido. É como se Jesus estivesse dizendo: “não fiquem só falando bata, bata, bata, igual os pagãos. Suas orações devem ter sentido lógico.” Se Jesus condena a repetição de sons sem sentido em orações, por que Paulo diria que isto é um dom do Espírito? As línguas em I Coríntios, assim como em Atos, são linguagens coerentes e as mensagens são lógicas, e não barulhos estranhos de gente enrolando a língua. Da próxima vez que você ouvir alguma pessoa falando “bata, bata, bata...” em um culto, saiba que ela está fazendo isto na sua ignorância, movida por emocionalismo e não pelo Espírito Santo.
O dom do Espírito é um “sinal para os infiéis” (I Co 14:22). Sendo assim, é um milagre impressionante do Espírito Santo, não um barulho que qualquer um pode imitar. Também não é algo que se aprenda em curso, como já vi em algumas igrejas. Isto mesmo, curso de dom de línguas. Você aprende algumas palavras, solta a língua e repete à exaustão, até aquilo se tornar automático. Alguém pode me apontar um verso bíblico que ensine esta técnica? Também não vale decorar meia dúzia de palavras em aramaico e ficar usando elas de vez em quando.
O falso dom de línguas já causava divisão na igreja no segundo século da era cristã. Note o seguinte relato sobre um profeta chamado Montano (126-180 a. d.):
“Montano ficou fora de si, em uma espécie de frenesi e êxtase; ele delirou e começou a balbuciar e pronunciar coisas estranhas, profetizando em uma maneira contrária ao costume da Igreja, entregue pela tradição desde o princípio. Alguns dos que ouviram suas falas espúrias na época ficaram indignados, e o repreenderam como se ele estivesse possesso...Mas outros, imaginando-se possuídos pelo Espírito Santo e dotados do dom da profecia, se tornaram presunçosos... e foram enganados por ele.”, Eusebius, Ecclesiastical History 5.16-17 (http://biblefacts.org/history/mont.html, http://biblesanity.org/glossa.htm)
Conforme Eusébio e Asterius Urbanus, Montano acabou se enforcando, instigado pelo espírito que o tomou.
Mas, alguém pode perguntar: “como saber se meu dom de línguas é real ou não?”
Bem, do ponto de vista técnico pode-se fazer um experimento:
1 – Quando estiver falando em línguas, peça para alguém gravar
2 – Leve a gravação para 2 pessoas que dizem ter o dom da interpretação e peça para elas interpretarem, sem que uma delas saiba qual foi a interpretação dada pela outra
3 – Se os dois intérpretes chegarem à mesma tradução, avalie o conteúdo da mensagem para ver se é bíblico, lógico e coerente
4 – Se os intérpretes chegarem a resultados diferentes, um deles (ou ambos) está mentindo. Você vai ter que procurar um terceiro intérprete.
Como eu duvido que alguém vá tentar um experimento como estes, se você está convicto de que tem o dom de línguas, pelo menos saiba como usá-lo biblicamente:
“E, se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus.”, I Co 14:27-28
Não se deve usar Atos 2 para justificar o falar em línguas simultaneamente com outros irmãos, pois aquele foi um evento extremo, conforme discutido no post anterior. A regra para o uso dos dons no culto cristão encontra-se nas epístolas (I Co 14), não em Atos.
Respondendo à pergunta da aluna evangélica que mencionei no início deste artigo, por que não falo em línguas? Porque Deus não me deu o dom e eu não vou fingir que o tenho.
Como complemento, relaciono abaixo dois textos que indicam que o dom de línguas havia cessado, ou pelo menos “se escondido”, algum tempo após a era apostólica.
(http://biblesanity.org/glossa.htm, http://en.wikipedia.org/wiki/Glossolalia):
Crisóstomo (345-407 a. d.)
Comentando sobre I Coríntios 12: “Toda esta passagem é muito obscura: mas a obscuridade é devido à nossa ignorância dos fatos referidos e devido ao seu encerramento, de tal forma que eles costumavam ocorrer naquela época, mas agora não se observam mais.”, Chrystostom, Homilies on First Corinthians, xxix, 1
Agostinho de Hipona (354-430 a. d.).
“O Espírito Santo caiu sobre os crentes e eles falaram em línguas que não tinham aprendido, conforme o Espírito lhes dava elocução. Estes eram sinais adaptados àquela época, pois havia este sinal do Espírito Santo em todas as línguas para mostrar que o evangelho de Deus deveria se espalhar por toda a Terra. Aquilo foi feito como um sinal e se encerrou.”, Augustine, Homilies on the Gospel of John 6:10, in The Nicene and Post-Nicene Fathers [7:497-98]