Para se entender certas coisas na Bíblia, é importante conhecer como pensavam os judeus na época de Jesus e o que eles esperavam do Messias. Por que os discípulos tinham tantas expectativas quanto ao Reino de Deus (veja o post Pedro era amilenista?) e se decepcionaram tanto com a morte de Jesus (veja Lc 24:21)? O que os fariseus esperavam do Cristo e por que as respostas de Jesus os confudiam tanto?
Curiosamente, uma leitura de antigos textos do Judaísmo revela uma incrível semelhança com a visão dispensacionalista da Bíblia. O presente artigo faz uso do impressionante trabalho de Raphael Patai, "The Messiah texts", Wayne State University Press, 1988, que consiste de uma coletânea de textos messiânicos e escatológicos da literatura judaica dos últimos três mil anos, incluindo o Velho Testamento, Talmud, Targum, Midrash, Zohar, etc. Patai é um historiador e antropologista reconhecido internacionalmente, com doutorados pela Universidade Hebraica de Jerusalém e pela Universidade de Breslau, além de ter sido ordenado no Seminário Rabínico de Budapest. A seguir, comparo alguns textos bíblicos e sua interpretação dispensacionalista com a visão dos rabinos antigos a respeito de sete tópicos ligados à escatologia (a doutrina do fim dos tempos). É bom enfatizar que não endosso a tradição extra-Bíblica do Judaísmo atual como se fosse cristã, pois a mesma contraria o Cristianismo em muitos pontos. No entanto, dentro de certas áreas encontramos surpreendentes coincidências entre a Palavra de Deus e os escritos dos rabinos. Estes textos são importantes, também, para esclarecer dúvidas daqueles que acham que as interpretações dispensacionalistas apresentadas abaixo nasceram com John Nelson Darby no século XIX.
A) O anticristo, os sete anos de Tribulação e o quadro geral dos últimos tempos
"E ele firmará aliança com muitos por uma semana; e na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oblação; e sobre a asa das abominações virá o assolador", Dn 9:27a
"Ninguém de maneira alguma vos engane; porque não será assim sem que antes venha a apostasia, e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, o qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus...E então será revelado o iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca, e aniquilará pelo esplendor da sua vinda", II Ts 2:3-4,8
Interpretação dispensacionalista: Nos últimos tempos haverá apostasia e degradação moral da sociedade (em contraste com o quadro otimista pintado pelos pós-milenistas). Haverá sete anos de Grande Tribulação, onde o Anticristo governará e será adorado como deus. Ele virá das nações do antigo Império romano. Então, o verdadeiro Messias o destruirá e virá para reinar.
Os rabinos:
"Ocorrerão cataclismas cósmicos: pestilência, fome, terremotos, neve e saraiva, relâmpagos e trovões...insolência, roubos, heresias, prostituição, corrupção, opressão, leis cruéis, falta da verdade e falta de temor de pecar. Tudo isto levará a uma degradação interna, desmoralização e apostasia. As coisas chegarão a tal ponto que as pessoas desesperarão da Redenção. Isto durará sete anos. Então, inesperadamente, o Messias virá", Patai, pp. 96
"No sexto ano do septenário Messiânico, sons serão ouvidos; no sétimo, haverá guerras, e ao final do sétimo, o Filho de Davi virá. Guerras são o princípio da redenção", B. Meg. 17b
"Eles o chamam de Armilus. E ele irá a Edom (Roma) e dirá a eles: 'Eu sou o seu Messias, eu sou o seu deus!'. E ele os enganará e eles instantaneamente acreditarão nele, e o farão seu rei" T'fillat R. Shim'on ben Yohai, BhM 4:124-26
Note que os judeus chamam o anticristo de Armilus, dentre outros nomes.
B) A mulher e o dragão
"E VIU-SE um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça...E a mulher fugiu para o deserto, onde já tinha lugar preparado por Deus, para que ali fosse alimentada durante mil duzentos e sessenta dias...E, quando o dragão viu que fora lançado na terra, perseguiu a mulher que dera à luz o filho homem. E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para que voasse para o deserto, ao seu lugar, onde é sustentada por um tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente.", Ap 12
Interpretação dispensacionalista: A mulher é a nação de Israel, 1260 dias são os três anos e meio finais da Tribulação, o dragão é o diabo, que perseguirá Israel por meio do Anticristo. Mas Israel se refugiará no deserto.
Os rabinos:
"Então, um homem aparecerá naquele lugar e todo o Israel se ajuntará...e juntos irão àquele homem, Armilus, que dirá 'Eu sou o Messias, seu rei e seu príncipe'...Então todo o Israel se ajuntará e irá para o deserto de Efraim...e invocará Deus...e o rei maligno se enfurecerá e ordenará que eles sejam mortos...e os filhos de Israel...irão para o deserto e levantarão suas vozes...e clamarão a Deus...Então, Deus lhes enviará Sua misericórdia e abrirá as janelas do céu." Ma'ase Daniel, pp 222-25
C) Os dez chifres da besta
"E os dez chifres que viste são dez reis, que ainda não receberam o reino, mas receberão poder como reis por uma hora, juntamente com a besta. Estes têm um mesmo intento, e entregarão o seu poder e autoridade à besta.", Ap 17:12,13
Interpretação dispensacionalista: Os dez chifres são dez reis de nações que formavam o antigo Império Romano, que darão apoio ao Anticristo.
Os rabinos:
"...virá Armilus e ele governará todo o mundo...E todos os que não acreditarem nele morrerão...E ele virá à terra de Israel com dez reis...E haverá sofrimento em Israel como nunca houve no mundo. E eles fugirão para as fendas e cavernas nos desertos. E todas as nações do mundo seguirão aquele maligno, o satânico Armilus, exceto Israel.", Sefer Zerubbabel, BhM 2:54-57
D) O Armagedom e a Segunda Vinda
"E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro; e julga e peleja com justiça....E vi a besta, e os reis da terra, e os seus exércitos reunidos, para fazerem guerra àquele que estava
assentado sobre o cavalo, e ao seu exército...E os demais foram mortos com a espada que saía da boca do que estava assentado sobre o cavalo, e todas as aves se fartaram das suas carnes.", Ap 19:11,19,21
Interpretação dispensacionalista: ao final da Tribulação, o Messias virá e vencerá os exércitos do Anticristo com sua palavra e as aves se alimentarão de seus cadáveres.
Os rabinos:
"Gogue e Magogue subirão contra a terra de Israel...e dirão... 'lutarei contra seu Deus primeiro e depois os aniquilarei'", Mid. waYosha', BhM 1:56
"E o Nome, bendito seja Ele, descerá sobre o Monte das Oliveiras, e as montanhas se separarão...e Ele lutará contra aquelas nações como um homem de guerra...E o Messias Filho de Davi virá...e matará Armilus.", Sefer Zerubbabel, BhM 2:54-57
"haviam se ajuntado dos quatro ventos do céu uma multidão inumerável de homens para guerrearem contra aquele Homem...ele enviou da sua boca uma corrente de fogo...e esta caiu sobre a multidão...e queimou a todos...", 4 Ezra 13:1-9, 25-26, 35-36
"E o Santo, bendito seja, ajuntará todas as aves do céu e as feras da terra para comerem suas carnes e beberem seu sangue", Sefer Eliyahy, BhM 3:65-67
E) O Milênio
Existem textos demais falando sobre o Milênio na literatura rabínica. Por falta de espaço, vou me restringir a um texto que menciona uma das inúmeras previsões (fracassadas, é claro) sobre a época do início do Reino do Messias.
Os rabinos: "Felizes serão todos aqueles que permanecerão no mundo ao final do sexto milênio para entrar no [milênio do] Sabbath...", Zohar 1:119a
Infelizmente, tal interpretação do Reino de Deus como sendo o sétimo Milênio do planeta terra também já foi defendida por alguns dispensacionalistas no passado.
F) O diabo e os ímpios lançados no lago de fogo
"E o diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde está a besta e o falso profeta...E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo.", Ap 20:10,15
Interpretação dispensacionalista: No fim do Milênio, Cristo lançará o diabo no lago de fogo. Logo em seguida, após o Juízo Final, os ímpios terão o mesmo destino.
Os rabinos:
"Quando Satanás viu o Messias, ele tremeu, caiu sobre seu rosto e disse 'deveras, este é o Messias que no futuro irá me lançar e a todos os príncipes das nações do mundo no Gehenna'", Pes. Rab. pp. 161a-b
G) A nova Jerusalém
"E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido.", Ap 21:1
"E as doze portas eram doze pérolas; cada uma das portas era uma pérola;", Ap 21:21a
Interpretação dispensacionalista: Após o Juízo Final, na nova terra haverá uma nova cidade de Jerusalém vinda do céu, cujos portões serão pérolas gigantes.
Os rabinos:
"E todo o Israel achará favor aos olhos de Deus. No lugar da Jerusalém destruída, Ele baixará para eles uma Jerusalém dos céus", Ma'ase Daniel, pp 225
"No futuro, o Santo, bendito seja Ele, trará pedras preciosas e pérolas de trinta por trinta côvados em tamanho e irá perfurar nelas aberturas de dez por vinte, e as porá nos portões de Jerusalém", B. Bab. Bath. 75a
Conclusão
É impossível uniformizar os ensinos rabínicos sobre os últimos tempos, pois, além do estudo do Velho Testamento, eles se baseiam em diversas visões, lendas e mitos. Contudo, os textos que expus neste artigo resumem o quadro geral defendido por muitos deles. Com toda esta semelhança entre o dispensacionalismo e o judaísmo, devida a uma interpretação literal das profecias do Velho Testamento, pode-se perguntar se os dispensacionalistas não entenderam erradamente a Bíblia, assim como os judeus nos tempos de Cristo. De fato, até hoje os judeus usam o argumento de que Jesus não cumpriu as profecias Messiânicas para negar que Ele era o Cristo. Para entender a resposta a este argumento, vale a pena estudar o que os rabinos antigos diziam sobre os textos que falam sobre o sofrimento e morte do Messias. Mas isso fica para um próximo artigo.
p.s. As referências completas para as abreviações acima podem ser encontradas no livro do Prof. Patai.
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